domingo, 18 de março de 2012

Justiça e Felicidade em Platão

Fonte:
http://www.espacoacademico.com.br/060/60silvafabretti.htm



Justiça e Felicidade em Platão


De que forma é a justiça melhor que a injustiça? E quem é mais feliz, o homem justo ou o injusto? Herdeiro e continuador da ética socrática, Platão foi quem pela primeira vez consignou por escrito argumentos em defesa da justiça como a virtude por excelência, seja para o indivíduo seja para a sociedade, e propalou a crença socrática de que o homem justo é intrinsecamente feliz, desenvolvendo, dessa maneira, um conceito de justiça substancialmente distinto das concepções tradicionais.
Princípio fundamental da ética e política platônica, a noção de justiça é recorrente nos trabalhos de Platão, que dedicou à busca da natureza ou definição da justiça um diálogo bastante complexo e, certamente, o que se tornou mais célebre: a República. No primeiro livro da República, é colocada questão “o que é a justiça?” para o debate entre Sócrates e seus interlocutores. Rejeitadas sem maiores esforços argumentativos certas opiniões vulgares que supunham ser a justiça fazer bem ao amigo e mal ao inimigo, ou então dizer cada um a verdade e restituir o que é devido, a discussão torna-se mais acalorada com a introdução do aguerrido sofista Trasímaco, defensor de uma concepção provocativa daquilo que seja a justiça. De acordo com Trasímaco, “a justiça não seria outra coisa senão a conveniência do mais forte” (República, 338c). Seria, pois, direito de quem manda ou governa estabelecer as leis e fazer cumpri-las segundo seu interesse; e a justiça convencional, isto é, aquilo que o senso comum reputa como justo nada mais seria que a obediência dos mais fracos. Com base nessa visão da justiça e do justo, Trasímaco propôs uma inversão dos tradicionais valores de justo e injusto, argumentando, a partir de premissas comumente aceitas como realistas, em favor da superioridade da conduta injusta. Se a justiça consiste na vantagem do mais forte, o prejuízo é próprio daquele que obedece e serve. Os submissos agem em benefício dos mais poderosos tornando-os, com seus serviços, mais felizes e nunca a si mesmos. Na vida cotidiana, o homem justo, seja qual for o negócio em que se envolva, sempre sai perdendo para o injusto, o qual, obviamente, permaneceria sempre em melhores condições, usufruindo maior riqueza e prestígio. É com flagrante desfaçatez que o sofista apresenta a tirania e a vida do tirano como modelos da mais completa injustiça e do máximo de felicidade que esse tipo de injustiça é capaz de proporcionar. Assim, o tirano, que por arbítrio usurpa, tortura e mata, fazendo os cidadãos seus escravos, não é injuriado por estes, mas invejado e qualificado de feliz por todos quantos souberam que ele cometeu a injustiça completa. “É que aqueles que criticam a injustiça”, disse Trasímaco, “não a criticam por recearem praticá-la, mas por temerem sofrê-la” (República, 344c). A justiça, o sofista reiterou, é a vantagem do mais forte.
A tese de Trasímaco, que representava uma opinião política vigente no tempo de Platão, está em frontal desacordo com as crenças mais firmes do autor da Repúblicaa respeito da justiça. Tais crenças vão sendo postas e discutidas ao longo do diálogo; mas já nesse primeiro livro a concepção fundamental da justiça platônica fora introduzida, porém não suficientemente desenvolvida. Para refutar a identificação da justiça com a vontade e o desígnio do mais forte, Sócrates aduziu uma série de argumentos e analogias, que é impossível expor todos aqui. O mais importante focaliza o fato de que cada coisa possui uma função própria. Sejam os instrumentos de trabalho, os animais ou os órgãos dos sentidos, cada um possui uma virtude própria (arete), que o possibilita executar da melhor maneira sua função específica (por exemplo, a afiação da navalha, a visão aguda dos olhos etc.). A alma (psyche) do homem não escapa à regra. Ela tem uma função, qual seja, a vida, e a arete que a permite levar a cabo esta função do modo melhor possível é a justiça. De sorte que é o homem justo, não o injusto, o que vive bem e, por isso, é próspero e feliz. Essa idéia não é nenhuma novidade trazida pela República, já foi aventada no diálogo Górgias. Sua importância é capital. Com efeito, Platão, seguindo Sócrates, ofereceu uma concepção de justiça muito diferente das concepções vulgar e aristocrática. “No lugar de conceber a justiça como um conjunto de convenções sociais que são articuladas e impostas pela e por causa da sociedade como um todo, Sócrates explica a justiça como aquela virtude (excellence) ou arete pela qual qualquer o ser humano será levado ao tipo de vida que maximizará seu maior bem”[1]. Nesse mesmo sentido é oportuno citar ainda W. Jaeger: “O conceito platônico do justo está acima de todas as normas humanas e remonta a sua origem na alma mesma. É na natureza mais íntima desta onde deve ter seu fundamento o que o filósofo chama o justo”[2]. Em resumo, podemos afirmar que a justiça platônica reside, antes de tudo, na alma humana como sua qualidade precípua e critério do melhor e mais feliz tipo de vida ao homem.
Tal noção de justiça se afigura o resultado positivo da discussão do primeiro livro da República. Mas Sócrates, com sua habitual circunspecção, não se deu por satisfeito com esse resultado; desejando abandonar a conversa. É impedido pelos irmãos de Platão, Gláucon e Adimanto, dois jovens da elite ateniense que, curiosos para ouvir Sócrates advogar em favor da causa da justiça e mostrar em que esta é melhor que a injustiça, tomam partido, não por uma inclinação pessoal, pela opinião do sofista e passam a elogiar e defender a injustiça como superior à justiça. Foi assim que Gláucon esboçou o quadro extremado do homem justo que, tomado por injusto, é submetido a toda forma de torturas, espoliado e encarcerado, passando pelas mesmas penúrias também sua família; enquanto que o homem injusto, pelo contrário, pode ser tão astuto em sua maldade que é capaz de encobri-la por toda a sua vida e gozar da mais elevada reputação e de todas as recompensas possíveis ao homem. Na mesma linha de raciocínio, argumenta Adimanto em defesa da injustiça considerando-a como o caminho mais proveitoso para o homem que a pratica com êxito, e não só na vida, mas também depois da morte – se for verdade que os deuses perdoam a culpa dos injustos em troca de ritos. Sócrates é, então, solicitado a demonstrar, na contra-corrente da opinião da multidão, que a justiça é um bem em si, desejável por si mesma e por suas conseqüências; e a explicar não apenas que a justiça seja melhor que a injustiça, mas o efeito que cada uma delas tem sobre quem a possui, e que um desses efeitos é bom e o outro mau.

Essa petição implica um trabalho colossal, que Sócrates duvidou fosse ele capaz de realizar. Contudo, para não ser acusado de impiedade por não defender a justiça, aceitou o desafio, em atenção a seus jovens interlocutores, desenvolvendo uma extensa investigação em psicologia, teoria política e metafísica. Não podemos expor aqui em detalhe a demonstração de Sócrates – ao leitor mais interessado fica a recomendação de apreciar as prazerosas páginas da República. Mas é mister que apresentemos seu resultado, de forma resumida. Seguindo seu princípio metodológico de primeiro descobrir o que seja a justiça no plano da cidade (que exigiu toda uma explanação da estrutura do Estado ideal e da educação dos seus guardiões) para depois achar a justiça no indivíduo, Sócrates afirma como sendo a justiça no caso da cidade o princípio de que cada pessoa deve realizar sua própria tarefa, “aquela para qual a sua natureza é a mais adequada” (República, 433a). Isso é a justiça, o fundamento do Estado. À luz dessa descoberta, Sócrates se volta à busca da justiça no indivíduo. O indivíduo entendido como um Estado em proporções menores também se constituiria de três ordens. Existe no indivíduo o princípio racional, que representa o papel dos guardiões na cidade da alma; o elemento impetuoso que, retamente empregado, é a ajuda da sabedoria, tal como os auxiliares são assistentes dos governantes, e ambos devem, uma vez educados, dominar a massa dos desejos que formam a parte apetitiva da alma e infundir no homem uma temperança total, pois a justiça individual toma lugar quando todas as faculdades trabalham em harmonia umas com as outras. Quando a sabedoria governa, o homem estará em paz consigo mesmo. A justiça é a saúde, a beleza e o bem-estar da alma; o vício é sua enfermidade, fealdade e fraqueza. Isso basta, certamente, para deixar clara a superioridade da justiça em relação à injustiça, e o fato de que é daquela, jamais desta, que se deve esperar a felicidade verdadeira. Assim, como muito apropriadamente destaca W. K. C. Guthrie, para Platão, “justo e injusto, justiça e injustiça, não são simplesmente questões de relação entre homens; essencialmente são estados internos e espirituais do indivíduo, um estado saudável ou patológico respectivamente da psyche”. Enfim, definida a justiça como harmonia e ordem interna, a felicidade do justo consiste na conquista e conservação dessa harmonia, a qual, nos rigores da moral socrático-platônica, não sofre maiores interferências de fatores externos.

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